Maioria Conservadora no Supremo Tribunal: um Retrocesso na Democracia?
- Maria Carolina Dias
- 29 de out. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de jan. de 2021
Desde a morte de Ruth Bader Ginsburg, uma reconhecida líder da ala mais progressista do Supremo Tribunal dos EUA, que se tem vindo a gerar um desequilíbrio em benefício dos conservadores. Os progressistas têm o papel importante de contrabalançar os juízes mais conservadores, visto que pelo Supremo passam temas ideologicamente sensíveis que abordam o direito ao aborto, a defesa dos direitos das mulheres e das minorias, e outros assuntos são ainda mais controversos nos EUA, como a posse de armas e a pena de morte. O Supremo Tribunal é a mais alta instância judicial norte-americana e tem o poder de mudar leis. É constituído por nove juízes com cargos vitalícios que só podem ser afastados dos mesmos através de um processo de destituição no Congresso. Na sequência da morte de Ginsburg, ficaram três juízes progressistas e cinco conservadores nos restantes cargos, cabendo ao Presidente dos EUA apresentar uma nomeação ao cargo, que depois deve passar pelo Senado para ser confirmada.
O recente processo de tornar Amy Coney Barrett juíza do Supremo Tribunal já foi contestado por vários democratas. Segundo Biden, estando os EUA tão próximos das eleições, deveria ser a próxima administração a escolher o substituto de Ginsburg e, “para que não haja qualquer dúvida, deixem-me ser claro: os eleitores devem escolher o Presidente e o Presidente deve escolher o juiz para que o Senado o considere”. Apesar de ter sido criado o precedente de não se nomear um juiz em ano eleitoral, não foi inconstitucional dar continuidade a este processo. Para reforçar o seu argumento, Biden relembrou ainda que, em 2016, após a morte do juiz conservador Antonin Scalia, Mitch McConnell, líder da maioria republicana do Senado, fez questão de ignorar a nomeação de Merrick Garland por parte de Barack Obama, não submetendo a voto esta nomeação visto que, segundo McConnell, não fazia sentido uma aprovação em ano eleitoral. Faltavam ainda nove meses para as presidenciais (Lusa, 2020). A candidata democrata a vice presidente, Kamala Harris, também não ficou satisfeita com a nomeação da conservadora Barrett, já que esta irá constituir um perigo ao que Ginsburg construiu até à data da sua morte. Mas a diferença é que “Obama was in his last term and faced a Republican Senate, but Republicans now control both the Senate and the White House. Simply put, Republicans now have the power to do in 2020 what the Democrats did not have in 2016”. (Subramaniam, 2020).
Mais uma vez, embora esta nomeação não possa ser considerada inconstitucional, há que ter em conta que os princípios da Constituição passam por servir os interesses da população, e este processo em nada os teve em conta. Segundo um poll do Washington Post-ABC News, 57% dos participantes votaram que o próximo juiz deve ser nomeado pelo próximo presidente. Apenas 38% votaram que esta é uma decisão a ser tomada por Trump (Goldmacher & Glueck, 2020).
Amy Coney Barrett é mulher e mãe, representando um papel que pode vir a “cair bem” na população feminina (algo que deve ter sido pensado por Trump como forma de garantir alguns votos nas eleições). Afastada dos ideais ditos liberais, muito dificilmente conseguirá trazer estes votos visto que tem posições bastante controversas em alguns temas muito polarizadores de opinião pública. Quanto ao aborto, Barrett certamente pretende acabar com o Roe v. Wade, o caso judicial que garantiu o reconhecimento do direito ao aborto. É católica devota, mas já garantiu várias vezes que a sua posição pessoal não irá interferir com o seu trabalho, constantando que "I would stress that my personal church affiliation or my religious belief would not bear in the discharge of my duties as a judge". No fim, claro que é uma questão a ser estudada, uma vez que a sua posição sobre o casamento homossexual e o direito ao aborto e outros direitos reprodutivos a tornaram popular entre a ala mais conservadora. Tem vindo também a seguir os passos do seu já falecido mentor juiz Scalia e, à semelhança deste, Barrett vê as palavras da Constituição de uma forma bastante linear, acreditando que devem ser interpretadas tal como foram escritas, e segundo os liberais esta é uma abordagem considerada um pouco antiquada, visto que os tempos mudam, e há que se adaptar às novas realidades. Com a nomeação de Barrett, e insatisfeitos com a ligação da juíza com o grupo religioso People of Praise, alguns ex-membros desta comunidade têm vindo a público falar sobre alguns assuntos que foram escondidos pela comunidade ao longo da sua existência, já que existe um “deep concern regarding the culture of secrecy, abuse of power and male-dominant hierarchy” nesta comunidade. Realmente não existe nenhuma razão para nos estendermos sobre esta questão, é mais uma comunidade semelhante às outras inúmeras “comunidades religiosas” existentes em território norte-americano, que têm tanto de religiosas como de intolerantes.
Durante as hearings com os Senadores, o silêncio de Barrett sobre inúmeros assuntos foi ensurdecedor. Como exemplo, quando questionada sobre as crianças que são separadas dos pais nos processos de imigração, Barrett, como mãe, manteve em silêncio a sua opinião. No passado dia 27, a confirmação do Senado sobre a nomeação de Barrett teve 52 votos a favor, todos por parte de republicanos, e 48 contra por parte de todos os democratas (e de uma senadora republicana). Pode ser considerada uma vitória política para Trump a poucos dias das eleições, sendo que manter uma ordem conservadora na política doméstica dos EUA sempre foi um dos objetivos da sua administração. O grupo Humans Rights Campaign está totalmente contra esta nomeação, vendo a confirmação pelo Senado como uma "absolute threat to LGBTQ rights". Foi a única nomeação para o Supremo que em mais de 150 anos recebeu uma confirmação sem votos a favor no partido da oposição. Segundo o Partido Democrata, chega a ser hipócrita por parte dos republicanos votarem a favor desta nomeação visto só faltarem dias para a eleição do próximo presidente norte-americano, remetendo então para a questão da (não) nomeação de 2016 (Expresso, 2020). A possível eleição de Biden pode vir a trazer um pouco de “ar fresco” no ambiente hostil vivido entre os dois partidos. Se o Partido Democrata conquistar uma maioria no Senado, e se Biden conseguir este grande feito contra Trump, pode haver uma resposta coordenada e firme à confirmação de Barrett para o Supremo. Existe ainda a possibilidade de Biden nomear uma comissão bipartidária de forma a analisar a possiblidade de serem postos mais cargos no Supremo para além dos atuais nove juízes, e assim nomear juízes que consigam fazer frente aos mais conservadores (Martins, 2020). Na Constituição não existe nenhuma alínea sobre o número de juízes para o Supremo Tribunal, sendo que o tamanho deste mudou inúmeras vezes nas suas primeiras oito décadas de existência. No final, Barrett foi nomeada por um presidente que, em eleições presidenciais, perdeu o voto popular e que teve um processo de impeachement por abuso de poder e obstrução do Congresso.
Em suma, acredito que o que está em jogo não é uma divisão partidária, não é a politização Democrática ou Republicana. A necessidade de um governo que seja representativo é palpável, um governo que tenha em consideração a vontade norte-americana e que procure o progresso democrático, deixando de parte as vontades políticas partidárias. Os Republicanos, através de Trump, têm vindo a encher o Supremo Tribunal com juízes conservadores de forma a conseguirem por um término ao Affordable Care Act. Numa opinião pessoal, apenas os Democratas serão agora capazes de realinhar as estratégias para acabar com o desequilíbrio gerado por Trump na sua administração, isto claro, pelo bem da democracia de um país que tem uma democracia imperfeita desde a sua fundação.
Collinson, S. (27 de outubro de 2020). Trump Tries to Distract Americans on Pandemic in Final Election Sprint. Obtido em 27 de outubro de 2020, de CNN: https://edition.cnn.com/2020/10/27/politics/donald-trump-confirmation-amy-coney-barrett-joe-biden-election-2020-supreme-court/index.html
Expresso. (27 de outubro de 2020). EUA. Senado Confirma Nomeação da Conservadora Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal. Obtido em 27 de outubro de 2020, de Expresso: https://expresso.pt/internacional/eleicoes-americanas/2020-10-27-EUA.-Senado-confirma-nomeacao-da-conservadora-Amy-Coney-Barrett-para-o-Supremo-Tribunal
Goldmacher, S., & Glueck, K. (26 de setembro de 2020). Democrats Don’t Want to Get Personal in Debate Over Barrett. Obtido de The New York Times: https://www.nytimes.com/2020/09/26/us/politics/coney-barrett-biden-democrats-supreme-court.html
Lusa, A. (09 de setembro de 2020). Morte de juíza do Supremo Tribunal Ruth Bader Ginsburg abala EUA. Obtido de Deutsche Welle- DW: https://www.dw.com/pt-002/morte-de-ju%C3%ADza-do-supremo-tribunal-ruth-bader-ginsburg-abala-eua/a-54986622
Martins, A. (27 de outubro de 2020). Senado dos EUA Confirma Juíza Amy Coney Barrett no Supremo Tribunal. Obtido em 27 de outubro de 2020, de Público: https://www.publico.pt/2020/10/27/mundo/noticia/senado-eua-confirma-juiza-amy-coney-barrett-supremo-tribunal-1936847
News, N. (Producer). (28 de outubro de 2020). 5 Things to Know About Amy Coney Barrett’s Confirmation. Obtido em 28 de outubro de 2020, de https://www.youtube.com/watch?v=6LhrxPeGb5A&feature=youtu.be
Richards, C. (27 de outubro de 2020). Amy Coney Barrett’s Appointment is a Wake-Up Call for Female Voters. Obtido em 27 de outubro de 2020, de The Guardian: https://www.theguardian.com/us-news/commentisfree/2020/oct/27/amy-coney-barretts-appointment-is-a-wake-up-call-for-female-voters
Subramaniam, T. (13 de outubro de 2020). Facts First- Fact-checking Biden's Claim that Barrett's SCOTUS Confirmation Process is "not Constitutional". Obtido de CNN: https://edition.cnn.com/2020/10/13/politics/biden-barrett-unconstitutional-fact-check/index.html
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