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Sionismo como fundamentalismo judaico e as origens da hostilidade israelo-árabe

  • Joana Moreno
  • 19 de mai. de 2021
  • 9 min de leitura

Excerto de análise crítica do sionismo enquanto fundamentalismo judaico elaborada durante a licenciatura em Relações Internacionais no ISCSP-UL.



Antes de mais, interessa explicar em que consiste o fundamentalismo. Surgiu associado ao protestantismo norte-americano no início do século XIX, aquando da compilação dos “Fundamentos da Religião”, ou Fundamentals, por teólogos protestantes, sendo os seus seguidores chamados de fundamentalistas por aqueles que não partilhavam a sua visão. Como Lara (2017) explicita, o fundamentalismo configura uma evasão do real, uma rejeição da modernidade, tendo os fundamentalistas “uma visão antropologicamente pessimista em relação ao presente” e “radicalmente maniqueísta”. Assim, de modo geral, os fundamentalistas são aqueles que defendem, de forma inflexível, os fundamentos da fé, imprescindíveis para a formação da consciência do crente.


Ao longo da História foram recorrentes as perseguições e a discriminação relativamente aos judeus, em grande medida decorrentes do facto de estes serem considerados culpados pela morte de Jesus Cristo e por terem, historicamente, uma boa capacidade de gestão dos seus negócios, o que os faz enriquecer rapidamente, sendo frequentemente acusados da prática de usura. Estes fatores contribuíram para que houvesse um sentimento de desconfiança geral em relação aos judeus.


No final do século XVIII surgiu o Haskalá, ou Iluminismo judaico, que visava “fundir as raízes da sabedoria hebraica com a cultura contemporânea” (Niskier, 2010), promovendo a integração dos judeus nas sociedades nacionais onde se inseriam através da adesão a certos aspetos da cultura nacional e europeia. Contudo, havia uma oposição e um forte receio, principalmente por parte dos judeus ortodoxos, de que levasse a uma assimilação cultural e à perda da identidade e dos valores tradicionais judaicos. Desse modo, e devido ao crescente antissemitismo que se verificou ao longo do século XIX, estas aspirações tornaram-se pouco prováveis, começando a criar-se as bases para o sionismo.


É possível localizar a origem do sionismo enquanto movimento político (como resposta direta ao antissemitismo) no século XIX, nomeadamente aquando da publicação, em 1896, da obra O Estado Judeu, escrita pelo jornalista austríaco e judeu Theodor Herzl em 1895. Nesta obra, Herzl, face ao antissemitismo, defendia que a única solução seria a criação de um Estado judaico, aberto a acolher todos os judeus, no local da “Terra de Israel” descrita na Bíblia, onde poderiam ser recuperadas as práticas culturais e religiosas que eram muitas vezes proibidas ou reprimidas nos vários países por onde se estendia a diáspora judaica (Guerreiro, 2014). No início da década, houvera já alguma migração judaica para a Palestina proveniente da Europa de Leste, onde as perseguições e a ausência de direitos dos judeus eram particularmente gravosas, destacando-se os pogrom na Rússia.


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O sionismo veio, então, patrocinar e materializar o antigo desejo do povo judeu relacionado com o regresso à terra de Sião, uma das designações atribuídas a Jerusalém na Bíblia, advogando a criação de um Estado soberano judaico no território onde se localiza, atualmente, Israel, que permitiria a todos os judeus, enquanto nação “e não apenas [como] uma religião ou comunidade étnica” (Amorim, 2003), viver em segurança.


O movimento viria a adquirir uma dimensão institucional em 1897, quando Herzl organizou o primeiro Congresso Sionista, em Basileia, Suíça, de forma a tentar obter o apoio de grupos de judeus por todo o mundo. No Programa de Basileia, resultante do Congresso, ficou estabelecida a pretensão de “criar uma pátria publicamente garantida para o povo judeu” na Palestina. Foi, então, oficializada a Organização Sionista Mundial, presidida por Herzl. Nos subsequentes Congressos Sionistas foram sendo criadas várias instituições que, mais tarde, se consubstanciariam nas instituições nacionais do Estado de Israel.


Contudo, a criação de um Estado judaico não foi um empreendimento fácil, tendo em conta que a Palestina se encontrava sob domínio do império otomano, que não permitia que esse território se autonomizasse. Apesar de parte do Uganda ter sido disponibilizado pela Grã-Bretanha para o propósito dos sionistas, estes continuaram a pretender estabelecer-se na Palestina (Editors of Encyclopaedia Britannica, 2019).


Em 1917, o então foreign secretary britânico, Arthur Balfour, numa carta endereçada ao Barão de Rothschild, presidente honorário da Federação Sionista da Grã-Bretanha, declarou o apoio do governo britânico ao “estabelecimento de um lar nacional [pátria] para o povo judeu na Palestina”, deixando, no entanto, claro que “não deverá ser feito nada que possa prejudicar os direitos civis e religiosos de comunidades não-judaicas existentes na Palestina, ou os direitos e estatuto político de outros judeus em qualquer outro país”. Este documento, considerado “um marco fundamental na caminhada do povo judeu para a criação de um lar na Palestina” (Mucznik, 2017) ficou conhecido como Declaração Balfour. Como refere Mucznik, com esta declaração, emitida durante a IGM, os britânicos tinham como fim tentar obter o apoio das “grandes comunidades judaicas” nos EUA e na Rússia, que seria útil para vencer a Guerra.


No período entre as duas Grandes Guerras houve uma nova grande vaga de migração de judeus para a Palestina, patrocinada por alguns Estados da Europa de Leste. Essa migração aumentou exponencialmente durante e após a II Guerra Mundial, em consequência do Holocausto, e foi visível o crescente apoio e simpatia mundial quanto às pretensões sionistas.


A partir da década de 1920, no âmbito do sistema de mandatos instituído pela Sociedade das Nações no pós-I Guerra Mundial, que estabelecia que os territórios resultantes do desmembramento do Império Otomano e as antigas colónias alemãs ficariam sob domínio dos vencedores, tendo cada potência mandatária a obrigação de conduzir esse território à independência, foi atribuído aos britânicos um mandato sobre a região da Palestina, entre outras. Após a II Guerra Mundial havia um certo sentimento de obrigação de resolver a questão judaica por parte dos vencedores da Guerra, motivado pelas atrocidades cometidas contra os judeus por parte do regime nazi. Contudo, apesar de o Reino Unido ter conseguido apoiar a maioria dos seus mandatos no caminho em direção à independência, e de a ONU, em 1947, ter promovido a criação de um Estado judaico e um Estado árabe no território da Palestina, não foi possível chegar a uma solução favorável a ambos os interessados.


Desde o final da década de 1930 que tinha vindo a haver uma escalada da tensão entre judeus e britânicos quanto à presença britânica na Palestina, nomeadamente quando foram colocadas restrições à imigração judia para o território e quando foi dado a entender que a Palestina se tornaria independente num futuro próximo. Iniciou-se, então, uma rebelião contra os britânicos (...). Os sucessivos ataques, como o bombardeamento do Hotel King David, em Jerusalém, e o apoio e organização de imigração judia ilegal foram tornando o território totalmente ingovernável.


Em 14 de Maio de 1948, o Reino Unido acaba por se retirar da Palestina, incapaz de pôr fim à insurgência, e, no mesmo dia, o David Ben-Gurion proclama a criação do Estado de Israel. Estava, então, concretizado o principal fim do movimento sionista, tendo sido definidos os “objetivos prioritários e permanentes” do mesmo no XXVII Congresso da Organização Sionista Internacional: “a unidade do povo judeu; a centralidade de Israel na vida judaica à escala mundial; o apoio à emigração de judeus para Israel (a alyath); o reforço da identidade do povo judeu, designadamente histórico-cultural e religiosa; a defesa ativa dos direitos cívicos dos judeus no mundo.” (LARA, 2017).


Aquando da criação do Estado israelita, o conflito israelo-árabe, que se tinha vindo a tornar cada vez mais violento ao longo das décadas de 1920 e 1930, exacerbou-se ao ponto de dar início à guerra israelo-árabe de 1948, na qual cinco Estados árabes circundantes, juntamente com os Palestinianos, tentaram impedir o estabelecimento do Estado de Israel – sem sucesso, sendo que “as fronteiras definidas no armistício alargaram o território do Estado de Israel a 77% da Palestina” e que “Israel ocupou ainda uma larga parte de Jerusalém” (Amorim, 2003).


Em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, Israel conseguiu anexar a parte oriental de Jerusalém, tendo a cidade sido declarada “capital una e indivisível” de Israel de forma unilateral.


É comum haver uma confusão entre os conceitos “judeu” e “sionista”. É um facto que a maioria dos judeus é a favor do movimento sionista, mas muitos deles não se revêm nas pretensões sionistas, considerando, por exemplo, que tal movimento deveria existir apenas no plano religioso e cultural e não no plano político, chegando alguns a apoiar uma solução de dois Estados para o conflito entre israelitas e palestinianos, com a criação de um Estado Palestiniano. Assim sendo, não existe uma posição consensual, pelo que nem todos os judeus são sionistas. Efetivamente, mesmo dentro do próprio sionismo existem posições divergentes, sendo alguns sionistas mais ortodoxos, tradicionais, profundamente religiosos, enquanto outros são mais abertos a novas ideias e novas soluções, normalmente associados à “esquerda sionista”. O sionismo não constitui, então, uma corrente unificada, mas sim uma multitude de correntes, entre as quais se destacam o sionismo trabalhista, o sionismo revisionista, o sionismo religioso e o sionismo de esquerda.


Os judeus foram, de facto, perseguidos, e foram-lhes negados vários direitos em muitos países ao longo dos séculos. É verdade que apenas conseguiram obter alguma autonomia política aquando da criação do Estado de Israel; assim sendo, é compreensível a necessidade que os sionistas sentiram de criar uma pátria judaica, principalmente após o Holocausto, funcionando a existência de um Estado judeu como um elemento tranquilizador para os numerosos judeus espalhados pelo mundo, assegurando-lhes uma “casa segura” para onde ir caso a História se repita.


Contudo, há que ter em conta que os movimentos nacionalistas palestinianos têm muitos motivos lógicos para se lhe oporem e para não aceitarem o Estado de Israel de bom grado, como o facto de terem sido despojados de grande parte do território que habitavam. Até cerca de 1880, os judeus nativos daquele território eram, de um modo geral, aceites pela comunidade palestiniana; as preocupações palestinianas relativamente ao sionismo iniciaram-se ainda durante o domínio Otomano, nomeadamente a partir da publicação de O Estado Judeu, e foram-se agravando progressivamente no início do século XX com o aumento da imigração judaica, a crescente separação entre árabes e judeus e, sobretudo, com a Declaração Balfour. Atualmente, consideram o sionismo uma ideologia extremista profundamente discriminatória contra quem não é judeu, algo que decorre de fatores como, por exemplo, o facto de qualquer judeu poder requerer a nacionalidade israelita, existindo, no entanto, vários entraves no caso do mesmo pedido da parte de palestinianos nascidos em Jerusalém. Além disso, nos últimos dias temos assistido a uma impressionante escalada de violência na sequência da decisão israelita de expulsar várias famílias refugiadas palestinianas de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental.


De um modo geral, também os países árabes circundantes tendem a opor-se ao sionismo, considerando esta ideologia colonialista e racista em relação aos palestinianos; chegaram a conseguir, em 1975, reunir o apoio necessário para que fosse aprovada uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que classificava o sionismo como “uma forma de racismo e de discriminação racial” (bastante polémica, acabaria por ser revogada em 1991) (Beauchamp, 2018). Por sua vez, os israelitas têm uma posição muito clara relativamente aos palestinianos: “the mere existence of Palestinians threatens the Zionist idea” (Palmer, 2007 apud Bennett, 2012).


Hannah Arendt (1951 apud Guerreiro, 2014) afirma que o facto de grande parte dos judeus encararem o antissemitismo como algo constante faz com que, muitas vezes, não o consigam distinguir da oposição dos árabes e palestinianos a um Estado judeu; Gershom Scholem, um dos mais proeminentes intelectuais judeus do século passado, consciente desta distinção, declarou que “o ódio que têm [pelos judeus] os Árabes não se assemelha ao ódio de Hitler, tem o seu fundamento num interesse real que nós lesámos” (Scholem, n. d. apud Guerreiro, 2014).


Esta hostilidade acabou por se transformar numa luta entre fundamentalismo judaico e fundamentalismo islâmico extrapolada para a esfera política, sobretudo após a conquista do poder pelo Hamas, na Palestina, um movimento que defende que a região da Palestina não pode nem nunca poderá ser alienada aos Palestinianos, e que entrou em divergência com a própria Organização de Libertação da Palestina; este fator, aliado à existência de grupos fundamentalistas judaicos que incentivam a construção de colonatos em territórios ocupados, a uma crescente opressão dos palestinianos e a violações de Direitos Humanos por parte de Israel continuam a alimentar o conflito, e dificultam cada vez mais a possibilidade de se chegar a uma solução, havendo uma atitude de “tudo ou nada” de ambas as partes.






LARA, António de Sousa (2017) – Ciência Política: Estudo da Ordem e da Subversão. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. 9a edição.

AMORIM, Fernando (2003) – “A diáspora judaica, o anti-semitismo e o sionismo”. Disponível em: https://www.janusonline.pt/arquivo/2003/2003_2_4_1.html

AMORIM, Fernando (2003) – “As guerras e as Intifadas”. Disponível em:

Anne Frank House (n. d.) – “Son todos judíos sionistas?”. Disponível em: https://www.annefrank.org/es/temas/antisemitismo/son-todos-judios-sionistas/

BEAUCHAMP, Zack (2018) – “What is Zionism?”. Disponível em: https://www.vox.com/2018/11/20/18080010/zionism-israel-palestine

BENNET, Morgan (2012) – “”The Israeli-Palestinian conflict has endured for too long." Is it because Israeli Zionism has incrementally taken an extremist direction, or is it because the Palestinian nationalist movement has proved to be ineffective?”. Disponível em: https://www.academia.edu/3024895/_The_Israeli-Palestinian_conflict_has_endured_for_too_long._Is_it_because_Israeli_Zionism_has_incrementally_taken_an_extremist_direction_or_is_it_because_the_Palestinian_nationalist_movement_has_proved_to_be_ineffective?auto=download

GUERREIRO, António (2014) – “O preço de ser Israel”. Disponível em: https://www.publico.pt/2014/08/31/mundo/analise/o-preco-de-israel-1668064

HALPERIN, Liora (2015) – “Origins and Evolution of Zionism”. Disponnível em: https://www.fpri.org/article/2015/01/origins-and-evolution-of-zionism/

LEVY, Sofia Débora (2015) – “Sionismo, Holocausto e revisionismo: uma análise crítica”. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/download/63014/36726

MUCZNIK, Esther (2017) - “A Declaração Balfour: cem anos de uma história de luz e sombra”. Disponível em: https://www.publico.pt/2017/11/02/mundo/opiniao/a-declaracao-balfour-cem-anos-de-uma-historia-de-luz-e-sombra-1790794

NISKIER, Arnaldo (2010) – “O Iluminismo judaico”. Disponível em: http://www.academia.org.br/artigos/o-iluminismo-judaico

The Editors of Encyclopaedia Britannica (2019) – “Zionism – Nationalistic Movement”. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Zionism

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